O que é “fé”? Já parou para pensar sobre isso? Talvez você pense: “mas não é óbvio? A fé é aquilo que não se vê! A fé é cega!”. Mas será realmente que a Bíblia define “fé” dessa forma? Ou será que através das gerações o sentido bíblico da palavra fé foi se perdendo? Em geral, quem crê que a fé é cega defende essa noção apelando para o seguinte texto: “Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem.” (Hebreus 11:1)

A fé é uma certeza cega?

Ora, não está claro? A fé está claramente sendo descrito como algo cego. Ou será que não? Acredite, há muito mais nesse texto do que muita gente percebe. Um dos grandes males dos cristãos dos tempos atuais é não conseguir interpretar um texto em seu contexto. Nesse próprio versículo, nós vemos algo que é praticamente um paralelismo sinonímico, ou seja, há duas frases que possuem o mesmo sentido, mas são escritas com sinônimos. Repare:

Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam,

a convicção de fatos que não se veem.

Aquilo que se espera, claramente não se vê. Ou seja, o autor está falando de algo que acontecerá no futuro. A fé, portanto, é a confiança em Deus de que certas coisas ocorrerão futuramente. E isso nós vemos mais claramente no contexto dessa carta. Repare os versículos seguintes: Noé confiou na promessa de Deus sobre o que aconteceria no futuro (Hb 11:7); Abraão confiou na promessa da terra prometida (11:8-10); os Israelitas confiaram na promessa da travessia do Mar Vermelho (11:29); etc.

Note, portanto, que o texto está definindo fé como a confiança em Deus para a realização daquilo que foi prometido. Por isso, o objeto da fé não se vê: porque está no futuro. É a confiança de que Deus irá realizar uma obra prometida. No nosso caso, é no retorno de Cristo. É nisso que confiamos que Deus realizará.

A fé das personagens bíblicas 

Ora, tendo dito isso, nos resta outra questão: essa confiança é cega? Tomando como base os próprios personagens citados pelo autor de Hebreus, podemos dizer que não, não é uma fé cega. Considere Abraão, por exemplo: Em Gênesis 12, Abraão recebe seu chamado de ir até à terra prometida. Ele realmente confia em Deus e vai, mas perde essa confiança quando sente fome e teme por perder sua vida. Como Bruce Waltke explica:

Após receber a promessa da terra, Abraão deve agora, a despeito da dificuldade e conflito, confiar que Deus lhe proverá dentro da terra e o protegerá fora dela. Em seu primeiro desafio de crer na fertilidade provinda de Deus quando a terra é estéril, Abraão falhará em agir corretamente. 

A tensão do enredo se turva de perigo com uma fome (12.10) que leva Abraão a temer por sua vida (12.11, 12), por seu projeto insensato (12.13) pela luta desesperada de Sara no harém de faraó (12.14-16). O plano profano do casal eleito quase naufraga sua peregrinação de fé. [1]

O primeiro ato de Abraão, portanto, é seguido de desconfiança. De modo tal que Deus intervém, fazendo com que o Faraó faça Abraão voltar ao caminho correto. Entretanto, como Waltke conclui, “A graciosa intervenção do Senhor, contudo, provê a solução do plano e os salva (12.17-20). Lição aprendida, regressam à Terra Prometida e à comunhão íntima com Deus (13.1, 2)” [2]. Assim, ao aprender a lição, a fé de Abraão foi fortalecida e ainda mais se fortaleceu com o passar do tempo e com suas experiências com Deus. É por isso que, ao final, ele chega com uma confiança tão extrema em Deus a ponto de estar disposto a sacrificar seu filho. Nesse ponto, Abraão já havia tido diversas experiências com Deus que lhe serviam de aval para confiar nele. Não foi uma fé cega, antes, foi uma fé muito bem fundamentada, pois, baseando-se em suas experiências, ele confiava que Deus iria ressuscitar seu filho, por meio do qual havia sido prometida uma descendência (Hb 11:17-19).

Outro exemplo que podemos citar é o de Moisés. Perceba como o próprio Deus dá a Moisés evidências para que os hebreus creiam em sua mensagem. Ao afirmar que os hebreus não acreditariam em sua mensagem, Deus lhe dá três evidências para apresentar a eles: o bastão que vira uma serpente (Ex 3:2-4); a mão leprosa (3:6-7); e a água do rio que se transforma em sangue (3:9). 

Ao comentar a passagem de Hebreus citada acima, Neil Shenvi diz:

Como na interpretação de qualquer documento, o contexto é crucial. Um único verso na Bíblia não deve ser lido isoladamente, mais do que uma única sentença em uma novela ou um parágrafo em um contrato. A definição de fé em Hebreus 11:1 é seguida por uma lista de um capítulo inteiro de indivíduos que, de acordo com o autor, exemplificaram a fé. Mas numerosos personagens no subsequente ‘hall da fé’ de Heb. 11 mostram fé que não pode significar ‘crença sem evidência’.

Por exemplo, Abraão é mencionado como um modelo de fé no verso 8 porque ele “obedecendo ao apelo divino, partiu para uma terra que devia receber em herança”. Mas, em Gen. 12, somos ditos que Abraão foi porque Deus falou com ele diretamente e o comandou a ir. No v. 27, nós somos ditos que “Foi pela fé que [Moisés] deixou o Egito”. Mas a narrativa em Êxodo 7-12 mostra que Moisés falou diretamente com Deus e também viu Deus operando numerosos milagres, incluindo dez pragas devastadoras. […] Eu poderia colocar muitos outros exemplos desse capítulo, mas o ponto é claro: ‘fé’ não pode significar ‘crença sem evidência’ porque ela é repetidamente usada para descrever a confiança que indivíduos tiveram em Deus depois de ouvi-lo falar com eles ou depois de vê-lo realizar milagres. [3]

Relevante para essa discussão, é saber o que a palavra grega pistis significa. Além de Hebreus 11:1, essa palavra é usada em vários outros lugares do Novo Testamento. De forma interessante, Atos 17 a usa precisamente do modo que foi comentado: “Porque Deus estabeleceu um dia em que julgará o mundo com justiça, por meio de um homem que escolheu. E deu certeza [pistin] disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17:31). Perceba que a pistis (“certeza”) é uma forma de confiança no que Deus fará no futuro, baseada na evidência da ressurreição. De fato, Michael Jones expõe como a palavra pistis foi usada em outros textos gregos antigos, como em Aristóteles e Heródoto, e mostrou que ela geralmente significa lealdade ou confiança, mas não fé cega. [4]

Para esclarecer a fé como algo bem fundamentado, considere o que ocorre no Novo Testamento: o dito Messias foi crucificado. A morte por crucificação era, para um judeu, uma maldição vinda do próprio Deus (Dt 21:22-23). Por conseguinte, os discípulos tinham motivos de sobra para terem perdido a fé em Cristo. Porém, o próprio Jesus dá uma evidência extremamente forte de sua divindade: sua ressurreição. Sem a ressurreição de Jesus, a fé cristã é vã (1Cor 15:14-17). Mas a própria aparição física do Cristo ressurreto mostrou aos discípulos que eles podiam confiar nele como Deus e Salvador.

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“Bem-aventurados os que não viram e creram”

Isso nos leva a outro texto usado pelos defensores da fé cega, que se encontra em João: “Jesus lhe disse: — Você creu porque me viu? Bem-aventurados são os que não viram e creram” (Jo 20:29).

E, novamente, temos mais um texto fora de contexto. Em primeiro lugar, “fé cega” geralmente é usado, na linguagem popular, como uma metáfora para uma “fé sem base, sem razão, sem evidências”. Contudo, o texto de João mostra Jesus usando em um sentido literal: o do testemunho ocular. Jesus, todavia, não está dizendo que quem o viu não é bem-aventurado (se não teríamos que concluir que todos os apóstolos carecem da bem-aventurança). A mensagem de Jesus é para os que no futuro viriam a crer nele, pois eles (no caso, nós), não vemos o Cristo ressurreto fisicamente. Os próprios autores do Novo Testamento apelaram para o testemunho ocular para dizer que sua fé era baseada em fatos (Lc 1:2; At 1:1-3; 1Cor 15:3-8; 2Pe 1:16).

Em segundo lugar, o próprio João diz que Jesus apresentou mais sinais como evidências de que as pessoas poderiam crer nele: 

Na verdade, Jesus fez diante dos seus discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.

Estes, porém, foram registrados para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome.

João 20:30,31

J. Warner Wallace comenta essa passagem, apontando que seria estranho o autor propagar uma fé cega em um versículo e, logo depois, dizer que existem bases sólidas para a fé cristã:

Em um momento, Jesus disse, “bem-aventurados aqueles que não viram e creram”, e logo depois, Jesus “portanto” continuou a fazer sua defesa com “diversos outros sinais” que Ele realizou na presença dos discípulos. Por que Jesus continuaria a providenciar evidências adicionais depois de dizer que aqueles que creem sem evidência são bem-aventurados? A resposta é encontrada, novamente, no evangelho de João. Na famosa oração ao Pai do capítulo 17, Jesus orou pela unidade, e ele cuidadosamente nos incluiu, aqueles que se tornariam cristãos muito tempo depois d’Ele ascender aos céus.

[…]

Nessa oração, Jesus estava falando de todas as pessoas (como eu e você) que creem em Jesus não por causa de evidência que vimos com nossos próprios olhos, mas por causa do testemunho (evidência direta) oferecida pelos discípulos (“sua palavra”). Sim, Tomé foi bem-aventurado ao crer baseado no que viu, mas nós também somos bem-aventurados porque cremos baseado no que ele (e os autores dos Evangelhos) reportaram como testemunhas oculares. […] Ele queria que eles tivessem muito o que falar. Jesus é o nosso exemplo. Ele repetidamente usou evidências para apresentar Seu caso, mesmo quando o Seu ponto era simplesmente o de encorajar em tempos de dúvida. [5]

Assim, vemos que nem em Hebreus e nem em João nós temos definições de uma fé como sendo cega e nem uma exortação a uma fé cega. Temos, ao contrário, uma fé sólida baseada em fatos.

Conclusão

Deus não deseja marionetes cegas. Deus demonstra continuamente que podemos confiar n’Ele em nossas vidas. Inclusive, as obras da natureza que testificam a respeito do Deus verdadeiro (Sl 19:1; Rm 1:18-21) nos mostram que devemos confiar em Deus acima de todas as coisas (Sl 146:1-6). Essa confiança, longe de ser cega, é uma fé racional e poderosa, que cresce conforme a experiência do individuo com Deus, individuo este que pode demonstrar suas bases de fé às outras pessoas, mostrando, assim, que elas também podem confiar em Deus. Por esse meio, sendo a vontade do Espírito Santo, o eleito pode passar pelo processo de conversão ou de fortalecimento da fé. Portanto, a fé cristã está longe de ser uma fé cega e irracional.

REFERÊNCIAS

[1] – WALTKE, Bruce. Comentário de Gênesis, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 255.

[2] – Ibid., p. 255-256

[3] – NEIL SHENVI – APOLOGETICS. How does the bible define ‘faith’?. Disponível em: http://www.shenvi.org/Essays/BiblicalFaith.htm. Acesso em: 09 dez. 2019.

[4] – INSPIRING PHILOSOPHY. Aron Ra Still Doesn’t Get Pistis (Faith) [19:45], Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sPIVsOl8sh4 Acesso: 09 dez. 2019.

[5] – WALLACE, J. Warner. Forensic Faith: a homicide detective makes the case for a more reasonable, evidential Christian faith, Colorado Springs, CO: David C Cook, p. 45.

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Felipe Forti
Felipe Forti

Formado em Design Gráfico na FMU e em filosofia no Mackenzie, autor dos livros “A Verdade que Existe: amando a Deus com todo o intelecto” e “A Gênese em Gênesis: solucionando a controvérsia das eras”. Atualmente estuda Teologia no Mackenzie. É escritor nos blogs Acrópole da Fé Cristã e Olhar Unificado. Adora apologética e nas horas vagas gosta de jogar videogame.

    1 Response to "A Fé Bíblica v.s. Fé Moderna: Seria a fé algo cego?"

    • Avatar Clévia

      Parabéns, Felipe.
      Que Deus continue te abençoando.

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